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quarta-feira, 3 de abril de 2013

Como estrelas na Terra: Toda criança é especial

“COMO ESTRELAS NA TERRA: TODA CRIANÇA É ESPECIAL”
 Roseli Bacili Laurenti
 O filme indiano "Como estrelas na terra: toda criança é especial", produzido e dirigido por Aamir Khan, traz como temática o transtorno de aprendizagem, em especial, a dislexia.
Dislexia do desenvolvimento ou de evolução é definida como uma desordem na aquisição da leitura e/ou escrita que acomete crianças com inteligência dentro dos padrões de normalidade, sem deficiências sensoriais, isentas de comprometimento emocional significativo e com oportunidades educacionais adequadas (Ellis, 1995; Pinheiro, 1994; Nunes, 1992, Condemarin e Blomquist, 1989). Porém, para compreendermos porque a criança considerada disléxica não consegue aprender a ler com a mesma facilidade com que leem seus colegas, é importante abordar os meios pelos quais essa habilidade é normalmente adquirida.
Trata-se de um fenômeno atual, de diagnóstico complexo, pois corpo e psiquismo andam juntos. Segundo Vera Blondina Zimermann, em palestra proferida no evento “Ler e Compreender: Dislexia - A correlação entre o passado e presente no processo diagnóstico” (Programa de Atualização em Dislexia, agosto de 2009, na Faculdade de Medicina do ABC) no caso da dislexia “o corpo não consegue se organizar para ler, escrever, inserir-se num tempo espaço exigido – “corpo tubo” –como entra sai”. Sendo assim, a criança é incapaz de pensar e organizar-se internamente, caracterizando um transtorno da ordem da constituição do psiquismo, advindo de uma falha ambiental severa.
Vamos então iniciar recontando o filme, destacando justamente as inadequações ambientais, tanto no âmbito familiar como escolar, que contribuíram para agravar os problemas de aprendizagem do personagem em foco, Ishan, um garoto de 9 anos de idade. Depois, caracterizamos os aspectos necessários para o aprendizado da leitura e escrita e finalizamos sinalizando outras formas de lidar com crianças que apresentam quadro de dislexia.
 Ishan, uma criança especial
Desde o início do filme, vamos observando que Ishan ausentava-se da aprendizagem escolar, fechando-se em seu mundo. Ele buscava na natureza algo que o fortalecesse para encontrar uma forma de lidar com suas dificuldades e limitações. Buscava a liberdade e se alienava em muitos momentos, prendendo peixinhos em uma garrafa, para então observá-los com carinho, ou sublimava por meio de desenhos criativos, pinturas, montagens de quebra-cabeças, armazenagem de materiais de sucata, como pedrinhas, pauzinhos, botões, chapinhas que colocava num saquinho que trazia sempre consigo. Envolvia-se muito com o que lhe era significativo; já com suas lições, e durante as aulas fantasiava com frequência, em todos os momentos possíveis.
Ishan sabia de suas dificuldades para aprender e que suas notas não eram boas e escondia sua inabilidade com o mau comportamento. Não conseguia se organizar para aprender a ler e escrever e procurava, inteligentemente, escapar de todas as condições penosas.
Certa vez, ao voltar da escola, envolveu-se com seus cães numa brincadeira e a eles entregou, propositalmente, o boletim escolar e uma convocação a seus pais. Em uma disputa, os cães então rasgaram os documentos e, assim, Ishan ficou livre momentaneamente do problema.
Mas sua mãe perguntou-lhe sobre o boletim... Fingindo não ouvir, com um olhar  “malandro”, continuou tomando seu suco. Até que o irmão mais velho, brilhante na escola, entregou o boletim à mãe e fez comentários sobre suas notas, enquanto Ishan escutava atentamente, mostrando-se orgulhoso do irmão.
Durante essa cena, ao escutar os latidos dos cães, Ishan saiu correndo para brincar com eles; nesse momento, os meninos da vila que jogavam futebol chutaram a bola próxima a Ishan e pediram para que ele a atirasse de volta. Ele o fez, mas errou o alvo e a bola caiu distante do esperado. Um dos garotos começou a lhe dirigir vários desaforos, até que Ishan se envolveu em uma briga, machucando-se e também o colega.
A mãe do menino machucado foi reclamar com a família de Ishan, e o pai dele ficou muito bravo com o filho, que, nervoso, riu. Seu pai ameaçou bater-lhe enquanto sua mãe corria em seu socorro, cuidando dos ferimentos. Nesse instante, o pai ironizou: “Continue, continue mimando...”.
Logo a seguir, o menino viu o pai arrumando a mala para uma viagem a trabalho, e Ishan perguntou-lhe aonde ia. Ele contou ao filho que iria embora para sempre. Ishan sentiu-se culpado, chorou e lhe pediu desculpas pelo ocorrido.
Na escola, por não conseguir aprender, Ishan não se interessava pelas aulas. Ficava olhando pela janela, distraindo-se até mesmo com uma poça d’água. Até que, certa vez, sua professora o chamou, solicitando que lesse um trecho do livro e dando-lhe múltiplos comandos simultâneos, o que para ele era muito complicado. Ishan se “perdeu” nas muitas tarefas e foi auxiliado pelos colegas. Voltou-se para o livro, mas, embaraçado, não conseguiu ler. A professora, muito brava, insistiu e Ishan contou: “As letras estão dançando”.
Ignorando a declaração do aluno, inconformada, a professora então o chamou de “engraçadinho” e, gritando, continuou a solicitar que cumprisse a tarefa. Com muita raiva, Ishan começou a pronunciar sons onomatopaicos, como: blablablablabla... Ela o colocou para fora da sala, chamando-o de “sem vergonha”.
Ishan saiu e permaneceu no corredor, enquanto outros alunos passavam e “mexiam” com ele. Ao retornar à sala, os colegas também caçoaram dele. Um deles perguntou se havia feito a lição de matemática e se o boletim estava assinado. Ishan se deu conta de que não havia feito nada disso e, com medo, saiu da escola, sem que ninguém percebesse, e ficou a perambular pelas ruas, sozinho. Encantava-se com ‘tudo’: visitou museus, a praia, o mar, observou homens trabalhando em construções, comprou um sorvete ...
Todas essas situações vividas por Ishan dentro e fora da escola devem ser observadas pelos educadores - pais, professores, psicopedagogos - para que possamos entender e buscar formas de lidar com toda essa problemática. Sabemos que o motor da aprendizagem é o desejo de conhecer (pulsão epistemofílica) e isso percebemos que Ishan tinha, e muito; no entanto, esse desejo só se desenvolve se o indivíduo se constitui como Sujeito e tem permissão para aprender.
De volta para casa, Ishan nos surpreende com uma belíssima “pintura a dedo”, em que  misturou várias cores, e em seguida, fez sua lição escolar, supervisionado pela mãe. Ao cometer erros repetitivos, ela chamou sua atenção, pedindo que se concentrasse e prestasse mais atenção.
À noite, Ishan não conseguiu dormir enquanto não contou o episódio da fuga da escola ao irmão, e após muito implorar, conseguiu convencê-lo a escrever um comunicado justificando o não comparecimento à aula, que havia ‘matado’.
No dia seguinte, na prova de matemática, ao olhar os números dos algoritmos, Ishan não sabia como resolvê-los e, imediatamente se pôs a fantasiar: os números se tornaram naves, vivendo uma aventura na galáxia. Esse fantasiar de Ishan, como defesa, levava-o a uma dissociação de seus conflitos e, às vezes, a uma paralisação. Ficava perdido, vagando nesse brincar, e ao encontrar o suposto resultado de um algoritmo, ficava muito feliz, mas o tempo da prova já havia terminado sem que ele conseguisse registrar nenhum resultado.
O pai de Ishan, ao retornar da viagem, encontrou o bilhete com a justificativa da ausência do garoto na escola, por estar febril. Então, perguntou à esposa o que havia ocorrido e descobriu todo o engodo. Pediu explicações ao filho, e irritado, acabou nele batendo.
Os pais foram até a escola e, em reunião com os professores, ficaram sabendo que já haviam sido convocados e sobre o boletim, não assinado por eles. Um a um, os professores foram falando sobre Ishan:
  • Repete os erros de propósito;
  • Os livros são seus inimigos;
  • Não presta atenção, quer ir ao banheiro toda hora, faz brincadeiras bobas e tirou “zero” nas provas;
  • Ninguém diz que é irmão de Yohan;
  • Segundo ano na escola não dá mais para ajudá-lo, talvez uma escola especial...
Desconcertado com toda a situação, ao sair da reunião, o pai disse a sua mulher: “Pensam que nosso filho é retardado, também, um número grande de alunos, não dá para dar atenção a todos... Vou mudá-lo de escola”, e resolveu colocá-lo num colégio interno.
A mãe se angustiou, pois nunca havia se separado do filho. Ishan chorou, implorando para que não o mandassem longe, mas o pai estava irredutível, mesmo diante do olhar de ódio do filho: “Olha só... Veja esse olhar! Nenhum pingo de remorso nesta cara. Lá te darão um jeito”. Estas e outras palavras ditas para o garoto podem ficar marcadas para sempre; é o que chamamos de “mensagens bruxas”.
Segundo Miller de Paiva[1] (1981, p. 246), uma mensagem bruxa “é sempre inconsciente”. Trata-se de “uma comunicação transmitida de maneira negativa, sentida, portanto, como censura e condenação com poder de maldição, sempre de pais para filhos. [...] a mensagem bruxa [...]: você está com o diabo no corpo; a criança sente-se com o próprio diabo e age como tal fazendo peraltagem e tomando atitudes antissociais.” Essa mensagem não se revela apenas pelas palavras, mas também pela atitude de indiferença ou mesmo pelo silêncio, quando os pais deveriam dar uma palavra de alento, ou esperança. Essas atitudes são de extrema importância no futuro desenvolvimento da personalidade. Quantos fracassados no trabalho, quantos toxicômanos temos visto e que podem ser consequentes dessas mensagens bruxas, que muitas vezes são proferidas por outras pessoas significativas, não só por familiares.
Nessa noite, Ishan teve um pesadelo: estava numa estação de trem, no meio de uma grande multidão e se perdeu da mãe; ficou gritando por ela, enquanto o trem se afastava; ele corria, corria, mas não conseguiu alcançá-la. Começou a gritar muito alto e sua mãe correu ao quarto para atendê-lo. Chorando, Ishan implorou para que não o mandassem ao colégio interno.
Mesmo assim, os pais o levaram para a nova escola, onde ficou interno, sofrendo muito por estar separado da mãe e do irmão. Tinha medo do escuro, de ficar só... e nos seus pensamentos, perguntava-se: “Sou tão ruim assim?”. Não sentia vontade de comer, chorava e não conseguia dormir.
Nessa nova escola, enfrentou professores autoritários. Um deles mandou que se sentasse como Rajan, o melhor aluno da classe, para que o tivesse como modelo e melhorasse. E, certa vez, esse mesmo professor solicitou que Rajan lesse um poema e que Ishan o interpretasse. Ele o fez, e o professor o humilhou diante dos colegas. Rajan, porém, o incentivou, dizendo que havia interpretado corretamente, enquanto os demais alunos apenas repetiam o que o poema dizia. Perguntou-lhe, então, por que Ishan havia se mudado de escola no meio do ano. Ele não respondeu a pergunta, mas elaborou outra: “Se você é o melhor aluno, por que seu pai colocou você aqui?”. O fato de ter sido mandado para um colégio interno fez com que Ishan generalizasse que se tratava de uma instituição para os maus alunos.
Na aula de artes, distraído com algo lá fora, não respondeu a pergunta do professor, além de ter recebido um giz na cabeça e, depois, várias palmatórias.
Por não compreender, não ler e escrever, distrair-se, Ishan era desprezado, castigado. Todos esses acontecimentos, em especial as atitudes dos professores autoritários e o fato de estar separado da família, fez com que ficasse cada vez menos participativo, sinalizando a instauração de uma depressão. Mesmo com a visita dos pais e do irmão, não se sentia feliz e até mesmo deixou de fazer o que mais gostava: desenhar e pintar.
Até que o professor de artes, aquele da palmatória, foi substituído por outro, que revolucionou o ensino dessa disciplina, propondo atividades interessantes. No início, porém, a participação de Ishan era “zero”. Não ria, não desenhava, não cantava, não dançava.
Certa vez, em uma aula, o professor solicitou aos alunos que desenhassem. Um deles questionou: “Mas não tem nada sobre a mesa!”, recebendo como resposta: “Essa mesa é muito pequena mediante sua imaginação”. E, então, os alunos arriscaram o novo, enquanto Ishan permanecia calado.
Os outros professores logo criticam a atuação do novo colega, praticando vários chistes sobre a sua aula. Muito espirituoso, em uma ocasião, ele respondeu a eles: “Hay, Hitler”, e saiu em direção ao corredor, onde encontrou Ishan, de joelhos, sendo castigado. O menino estava todo encolhido, como um bichinho medroso, acuado. Incomodado com a situação, com o castigo e a não participação de Ishan em suas aulas, logo percebeu que ali havia algum conflito.
O professor seguiu em direção ao pátio e, ao encontrar Rajan, lhe perguntou sobre Ishan: “Ele tem um problema”, contou o menino, “por mais que tente, não consegue ler e escrever”.
Nesse momento, o professor ficou pensativo e foi logo verificar os cadernos de Ishan nos escaninhos. Analisando a escrita do aluno, logo percebeu o que se passava, identificando-se com seu próprio conflito, quando criança, pois havia passado pela mesma situação.
Ciente da gravidade do caso, concluiu que o “menino estava em perigo”, e tomou a iniciativa de procurar os pais de Ishan, para investigar melhor a situação. Ficou muito surpreso quando se deparou com os desenhos e as obras de arte que o menino fazia, e mais perplexo ainda quando viu o desenho em que representava a família em movimento e Ishan separando-se cada vez mais de todos, e até mesmo se ausentando totalmente, ficando apenas o pai, a mãe e o irmão mais velho. A “ovelha negra” caía fora...
Muito emocionado, perguntou aos pais de Ishan por que o haviam mandado para longe. Eles responderam que o filho não conseguia aprender a ler e escrever, além de  apresentar atitudes inadequadas. O professor, então, explicou o que estava ocorrendo com Ishan: ele tinha dificuldade em reconhecer as letras, e essa dificuldade tinha um nome, dislexia. E complementou dizendo que o menino estava com a autoconfiança destruída.
“Vocês imaginam o que ele está passando? Ele esconde sua inabilidade atrás do mau comportamento. Seria o ‘não quero’ no lugar de ‘não consigo’. Cada criança tem capacidades e habilidades únicas. Toda criança é diferente, cada uma em seu próprio ritmo. Ele já está destruído, parou até de pintar. É muito triste”, disse o sensível professor.
No dia seguinte, durante aula, à frente de Ishan, o professor folheou o caderno vermelho de desenhos do garoto, que, muito admirado, perplexo, nada conseguiu dizer, apenas permaneceu muito atento ao professor.
Na sequência, o professor disse para toda a classe: “Hoje vou contar uma história, a história de um garoto que não sabia ler e escrever”. Ishan olhou assustado e se encolheu todo, achando que o professor falaria dele, enquanto os outros, interessados, riam da maneira como o professor contava a história: “As palavras eram inimigas e dançavam como formigas, causando horror. O alfabeto dançava em devaneio...”.
Em certo momento, perguntou: “Vocês podem adivinhar de quem estou falando?”. Ishan estava mais assustado ainda, até que o professor mostrou a figura de um homem, e os alunos responderam: “É Albert Einstein”. Depois, mostrou a figura de Leonardo da Vinci, e contou que ambos tinham dificuldade em escrever, mostrando na lousa como eles o faziam (espelhando). Pediu, então, aos alunos que lessem o que havia registrado na lousa, mas ninguém foi capaz de fazê-lo. Em seguida, pegou um espelho bem grande, colocou ao lado das letras e todos, admirados, conseguiram ler.
E, assim, continuou, citando vários outros disléxicos: Tomas Edison, um cantor famoso da Índia, Walt Disney, Pablo Picasso e até Agatha Christie. “Já pensaram uma escritora que não sabia escrever? Falo isso porque, entre nós, há pérolas preciosas que tiveram grandes dificuldades, mas que venceram no mundo. Vamos dedicar à aula de hoje aos famosos. Então iremos lá fora, no lago, e todos irão criar algo”.
Muito alegres, os alunos foram saindo, e também Ishan, com o seu caderno vermelho de desenhos nas mãos. Ele se aproximou do professor e perguntou: “Você foi à minha casa?”.  Sem responder, o professor contou que não havia citado uma pessoa, por não ser tão famosa, e disse o seu próprio nome: “Quando pequeno, eu também tive muitas dificuldades e meu pai também nunca me entendeu...”. E, juntos, os dois saíram para realizar as atividades.
No lago, o invento mais criativo foi realizado por Ishan, com apetrechos do seu saquinho. Todos o aplaudiram quando expôs seu trabalho.
O professor abraçou a causa de Ishan por ter com ele se identificado e foi conversar com o diretor para que fizesse algo em prol do aluno. Falou de leis e se dispôs a ajudá-lo durante três horas semanais. Mostrou os desenhos de Ishan e também o flip-book (caderno vermelho), e falou de outras habilidades dele, pedindo que, nesse momento: “não seja feita a correção dos erros, das trocas das letras que ele comete”.
Iniciou, então, as atividades de apoio com Ishan, utilizando a caixa de areia, letras móveis, toques, desenhando as letras na pele do braço, para que, com os olhos fechados, o menino conseguisse discriminá-las. Utilizou massinhas, folhas quadriculadas, fone de ouvido, jogos, amarelinha, computador, além de observações de pinturas de pintores famosos.
Depois, o professor promoveu um concurso de desenho e pintura para todos os participantes da escola - alunos, professores, diretores, administração. Enquanto orientava  alguns alunos, o pai de Ishan chegou e pediu para conversar com ele. Contou então que a esposa havia pesquisado na Internet algo sobre dislexia; queria que ele soubesse que se interessavam sim pelos problemas do filho.
O professor, então, lhe disse: “Importar-se é essencial, tem o poder de curar feridas – um bálsamo para a dor quando a gente se sente querido. Um abraço, um beijo, dizer ‘filho eu te amo. Tem medo? Estou aqui, se cair ou falhar, eu estou a seu lado’. Dar segurança, carinho. Importar-se é isso, não é? É bom saber que vocês pensam que se importam”.
O pai ficou chocado, foi se retirando, desconsertado, mas, antes, o professor lhe perguntou: “Sua mulher viu também na Internet sobre as Ilhas de Salomão?”. O pai respondeu que não sabia. E o professor contou: “Nas Ilhas de Salomão, quando os nativos querem parte da floresta para a agricultura, todos se reúnem e gritam xingamentos às árvores e em poucos dias elas secam e morrem. Elas morrem sozinhas.”.
Ao descer as escadas, o pai encontrou o filho lendo em um painel; emocionado, foi acometido por uma crise de choro e saiu sem conseguir falar com Ishan.
No dia do concurso, Ishan abriu o presente que havia recebido do irmão em uma das visitas ao colégio e começou a desenhar. Assim que finalizou, procurou o professor para entregar-lhe seu trabalho e, imediatamente, procurou o desenho dele. Surpreso e emocionado, viu que o professor havia desenhado Ishan.
Dois melhores trabalhos foram então escolhidos pelos jurados, mas só um foi o vencedor para ser capa do anuário do colégio. O diretor fez o anúncio, dizendo: “O discípulo ultrapassa o mestre. O professor foi derrotado e o vencedor foi Ishan”.
Ao ouvir seu nome, Ishan tentou se esconder, mas logo foi localizado e chamado para receber o prêmio. Todos o aplaudiram. Assim que recebeu a premiação, correu aos braços do professor e chorou muito.
Final do ano letivo. Reunião dos pais e entrega das notas.
Os pais de Ishan receberam o anuário e ficaram contentes com a ilustração do filho na capa, e também com o desenho do professor de artes. Participaram da reunião com os professores, que elogiaram o menino, dizendo que ele era brilhante. Ishan havia dado um “grande salto” graças aos olhos do sensível professor, que se dispôs a acolher e entender toda problemática do garoto. Chorando, o pai agradeceu muito a esse professor. Todos se despediram e foram caminhando em direção ao carro; enquanto isso, Ishan voltou para os braços do professor, que ergueu o menino para o alto, numa singela simbolização: “Voe, voe alto!”.

Aspectos fundamentais para o aprendizado da leitura e escrita

Como vimos na narrativa do filme em foco neste artigo, as relações interpessoais com o profissional e com o processo de aprendizagem permitem o surgimento de vínculos sadios, estruturados e prazerosos - diferentes dos vividos até então por aqueles que recebem o diagnóstico de dislexia. Desta forma, um sentido efetivo do aprender e do processo de aprendizado começa a ser incorporado.
Há que se considerar, ainda, que o sucesso de uma criança no aprendizado da leitura e escrita está relacionado ao amadurecimento fisiológico, emocional, neurológico, intelectual, além do contexto social em que ela se encontra inserida.
Para ler e escrever, pré-requisitos básicos precisam estar presentes: habilidades visuais e auditivas, percepções (táteis, visuais, auditivas), memória sinestésica, prontidão para ler, domínio do esquema corporal, lateralidade, orientação espaço-temporal, coordenação viso-motora, análise e sínteses visuais e auditivas, ritmo, consciência fonológica e linguagem oral.
Os desvios no processo de aprendizagem da leitura e escrita podem ser de dois tipos: de forma e de conteúdo.
A. Desvios de forma: disortografia consiste numa escrita com numerosos erros, que se manifesta logo que se tenham adquirido os mecanismos da leitura e da escrita. Os diversos motivos que podem levar a esse tipo de escrita são:
1. Alterações na linguagem: atraso na aquisição e/ou no desenvolvimento e utilização da linguagem, pobreza de vocabulário (código restrito);
2. Erros na percepção, tanto visual como auditiva: baseados numa dificuldade para memorizar os esquemas gráficos ou para discriminar qualitativamente os fonemas;
3. Falhas de atenção: a instabilidade não permite a fixação dos grafemas ou dos fonemas corretamente.
Uma aprendizagem incorreta da leitura e da escrita, especialmente na fase inicial da alfabetização, pode originar insegurança para escrever, e muitas dessas alterações estão presentes na dislexia.
Outro desvio de formadisgrafia, uma alteração da escrita normalmente ligada a problemas perceptivos-motores, em que a letra pode apresentar:
1. Traços pouco precisos e incontrolados;
2. Falta de pressão com debilidade de traços;
3. Traços demasiado fortes;
4. Grafismos não diferenciados nem na forma e nem no tamanho.
A escrita é desorganizada, irregular, apresenta falta de ritmo e problemas de orientação espacial, entre outras características.
Alterações no ritmo da leitura oral, que se apresenta sem entonação, lenta e silabada, tornando muitas vezes incompreensível o texto lido.
B. Desvios de conteúdo: são menos valorizados, pois aparecem quando a criança já lê e escreve palavras e sentenças mais elaboradas. Observar a construção do texto, a representação gráfica de uma idéia é fundamental, para precocemente diagnosticarmos esses desvios.
A leitura envolve a integração de múltiplos fatores relacionados à experiência do indivíduo, habilidades e funcionamento neurológico.
Há meios adequados para possibilitar que as habilidades de leitura e escrita sejam adquiridas, tais como:
1. Verificar se a dificuldade é de ensino ou é de aprendizagem;
2. Adequar o tempo para que o aluno se expresse;
3. Ajudar o aluno a monitorar seu próprio desempenho;
4. Esclarecer termos relevantes do vocabulário;
5. Evitar corrigir ou fazer o aluno repetir constantemente seus erros;
6. Ser paciente com a dificuldade expressada pelo aluno, sem interrompê-lo para completar a sua fala;
7. Propor jogos, brincadeiras;
8. Reforçar demonstrações de sucesso, para obter segurança pessoal;
9. Utilizar orientações e solicitações únicas, de maneira simples;
10. Evitar ressaltar as dificuldades do aluno, diferenciando-o dos demais;
11. Incentivar seus alunos a propor problemas e apresentá-los no quadro;
12. Não corrigir os trabalhos de casa com canetas vermelhas;
13. Não ignorar o aluno com dificuldades;
14. Não forçar o aluno a fazer as tarefas quando estiver nervoso por não ter conseguido.

A intervenção para o disléxico tem um caráter de urgência; a reabilitação em leitura e escrita lhe possibilitará condições de adquirir a educação formal e as habilidades básicas para o conhecimento de si mesmo e do mundo que o cerca.

Considerações finais

“A mente que se abre a uma nova idéia jamais voltará ao seu tamanho original”
Albert Einstein.

Segundo Rubens Alves, a gente só aprende o que gosta e também com o brincar.
“Como estrelas na terra: toda criança é especial” nos permite vislumbrar, no trabalho do professor de artes, a importância do brincar para a aprendizagem e, em especial, a preocupação com o aluno Ishan.
No momento de crise, de angústia por que passava o garoto, o professor buscou saber da história pessoal dele para compreender as razões que o levavam a não corresponder às propostas apresentadas em sala de aula. E foi mais longe: chegou até a família para poder intervir adequadamente no problema.
Ao entregar o caderno de desenho, o flip-book para seu autor, Ishan, possibilitou que o menino encontrasse um lugar, autorizou-o a criar e tomar posse novamente de si, reintegrando-se ao grupo. Um lugar ofertado pelo outro. E ao conquistar esse lugar, Ishan imediatamente começou a participar da aula. Também as narrativas de pessoas  reconhecidas intelectualmente e que tinham dislexia (interlocução) fizeram com que o menino se sentisse capaz de alterar a sua história, de conquistar um lugar e vislumbrar um futuro próspero, um destino, passos esses importantes para a sua reintegração no grupo familiar e escolar.
Outro aspecto a considerar é o modo como os pais e alguns professores lidam com as dificuldades dos alunos. Querendo um filho ideal, os pais resistem a reconhecer o filho real, o que prejudica o desenvolvimento de potencialidades. Também os professores que querem alunos prontos que não deem trabalho mostram-se incapazes de reconhecer as dificuldades apresentadas pelas crianças, desprezando-as por desconhecerem suas problemáticas.
Ressaltamos também a percepção do professor de artes, pois o aluno já estava apresentando uma “parada de desenvolvimento” que poderia ter causado sérios problemas em sua vida futura. Sendo assim, destacamos a importância do papel a ser desempenhado por um profissional atento e conhecedor da problemática da dislexia, para que atenda a criança em sua singularidade e possa auxiliá-la em sua trajetória. Para tanto, há necessidade de realização de um diagnóstico diferencial por meio de um trabalho de equipe transdisciplinar – corpo e psiquismo. Necessário também um profissional que atue não só com o letramento, mas  sobretudo com a triangulação: família, sujeito, escola.
De fato, a atuação do profissional não pode ser somente com o aluno; a família também é afetada pelo mau desempenho do filho e é necessário incorporá-la ao tratamento, orientando-a para poder compartilhar de maneira adequada da aprendizagem.
 A ação deve se estender à instituição escola, sensibilizando os educadores de que o disléxico precisa de técnicas e estratégias que o auxiliem nessa jornada e, para tanto, necessitam valorizar não seus erros, mas seus acertos.
É hora de realizarmos uma profunda reflexão para unirmos forças e efetuarmos um combate efetivo dessas manifestações que se apresentam ao nosso redor. Uma luta pelo que há de humano em cada um de nós.


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